A Tromba d’Água de 1949 em Americana

12 de dezembro de 1949.

Guardadas as devidas proporções geográficas, assim como milhões de pessoas se lembram de onde estavam no  20 de julho de 1969 ou no 11 de setembro de 2001, os antigos moradores de Americana estiveram, durante muito tempo, sempre prontos para responder à pergunta

Onde você estava durante a tromba d’água?

Há exatos 70 anos, uma gigantesca tempestade, seguida de transbordamentos e de uma inundação nunca vistos até então, deixou um rastro de destruição e morte. Até hoje, a tromba d’água de 1949 é a maior tragédia provocada por fatores naturais nos 144 anos de história de Americana.

A história da tromba d’água que chegou até os dias de hoje repete o roteiro de outros fatos que marcaram a memória da cidade. Começa com alguns poucos recortes de publicações da época, passa por uma série de relatos orais fantasiosos e mais preocupados com a romantização dos fatos, e, por fim, se consolida com a eterna reprodução de narrativas que falseiam os fatos reais.

Um detalhe marcante da história da tromba d’água é a presença de um circo no palco da tragédia. Corrigindo, não era apenas “um” circo, mas sim um dos maiores e melhores circos do Brasil à época, o Circo Teatro Universal, com mais de 70 componentes, incluindo artistas reconhecidos entre os mais célebres da história do circo brasileiro.

Talvez pelo caráter nômade do circo, sem maiores vínculos com a cidade, e pelo preconceito típico da sociedade provinciana da época em relação a artistas e “forasteiros”, o fato é que o Universal foi colocado em posição periférica nas narrativas sobre o episódio de 1949, mesmo tendo enfrentado a pior parte da catástrofe – além de estar instalado no local mais afetado pela tromba d’água e pela inundação, a maioria de seus artistas se encontrava desprotegida em frágeis barracas armadas ao seu redor.

A exceção, alimentada pela natureza inusitada da história, foi o papel de um palhaço do circo, que teria ajudado a salvar a vida de vários companheiros antes de sucumbir à tromba d’água e virar nome de rua em Americana.

A verdade, porém, é que os palhaços do Circo Teatro Universal se encontravam distantes do centro dos acontecimentos na noite de 12 de dezembro de 1949, e portanto não poderiam ter participado do salvamento.

Outra certeza é que nem mesmo uma tromba d’água houve. Entretanto, passados 70 anos de repetições da lenda, é tarefa ingrata tentar alterar a marca registrada do episódio.

Os detalhes da noite de 12 de dezembro de 1949 em Americana, incluindo seus antecedentes e sua repercussão, e a história dos principais envolvidos, são apresentados a seguir.

Antecedentes

Desde o começo do século XX foram registrados problemas na região central de Americana devido a enchentes de cursos d’água e posterior inundação das regiões mais baixas da cidade.

A cidade é praticamente dividida em duas pelo Ribeirão Quilombo que, antes de passar por obras de retificação na década de 1960, tinha um traçado bastante sinuoso, produzindo grandes inundações quando chuvas em Americana e em outros municípios em direção a sua cabeceira elevavam drasticamente o nível das águas.

O outro curso d’água importante para essa região da cidade é o Córrego do Parque, que em seu trecho final rasgava, até a década de 1940, todo o centro da cidade até desaguar no Quilombo – veja no mapa abaixo o traçado do Córrego do Parque naquela época.

O trecho final do Córrego do Parque em 1949, atravessando a região central de Americana.

O trecho final do Córrego do Parque em 1949, atravessando a região central de Americana.

Por ter uma vazão natural baixa, até os anos 1910 o Córrego do Parque raramente causava  algum tipo de problema maior para a então Villa Americana. Porém, a ocupação de suas encostas, que até então faziam parte do Parque Ideal, começa nos anos seguintes a alterar essa condição.

O proprietário do Parque Ideal, Basílio Rangel, morre em 1919. Sem herdeiros naturais, um confuso testamento fez com que as terras fossem divididas por um grande número de parentes distantes, a maioria sem nenhuma ligação com a cidade, que buscam rapidamente fazer dinheiro durante os anos seguintes com as terras herdadas.

A partir daí, acelera-se o surgimento de loteamentos, ruas, residências, fábricas e outros tipos de construções ao longo do antigo Parque Ideal. Já que esse movimento não foi acompanhado pelo necessário investimento em infraestrutura urbana, um de seus efeitos foi o grande aumento do volume de água que chegava ao córrego durante as chuvas, aumentando seu nível. Em casos de chuvas mais fortes, o volume do córrego chegava a formar enormes torrentes de água que avançavam em direção às partes mais baixas, prontas para invadir a região central.

Esse cenário crítico, formado pelas características descritas acima sobre o Ribeirão Quilombo e o Córrego do Parque, provocou grandes inundações no município durante as décadas seguintes.

Na década de 1940, duas delas ficaram marcadas pelos grandes prejuízos causados com a subida das águas. A primeira, em 2 de março de 1944, que pela violência da chuva também foi chamada de tromba d’água, atingiu também outras regiões do município, pois os rios que correm mais afastados do centro, como o Atibaia, o Jaguari e o Piracicaba também tiveram seus níveis elevados.

A outra grande inundação da década foi provocada por uma violenta tempestade na noite de 15 de janeiro de 1948. As águas do Ribeirão Quilombo ocuparam por dois dias a região mais baixa da cidade, incluindo aí a rua Carioba e adjacências. Houve queda de barreiras, desmoronamento de prédios e obstrução total do tráfego ferroviário, que ficou paralisado por mais de 48 horas.

Sem intervenções urbanas relevantes, restava aguardar o próximo temporal.

O Circo Teatro Universal

A idealização e criação do Circo Teatro Universal foram obras do piracicabano Maximiliano Luiz Bernardi. Nascido em 1895, filho de imigrantes, Máximo, como era mais conhecido, desde cedo demonstrou vocação artística – gostava de escrever, declamar, contar histórias, compor músicas, tocar violão, cantar, criar e atuar em peças teatrais.

Nos primórdios do Circo Teatro Universal, final da década de 1920, Máximo Bernardi, a esposa Antonieta e o filho Gumercindo.

Nos primórdios do Circo Teatro Universal, final da década de 1920, Máximo Bernardi, a esposa Antonieta e o filho Gumercindo.

Em Piracicaba, durante a juventude e o início da idade adulta, esteve sempre ligado às manifestações artísticas. Em 1917 fazia parte do Trio Auri-Verde, que já antecipava sua ligação com as artes circenses: apesar de ser em essência um conjunto musical, o trio incluía em suas apresentações números de prestidigitação, algo bastante incomum para a década de 1910. No começo dos anos 1920, Máximo foi violonista e vocalista do grupo Turunas Piracicabanos, um dos mais importantes choros da época na região de Piracicaba. Uma música de sua autoria, “Desafio”, foi das mais tocadas em corsos carnavalescos nesse período.

Máximo participou também de vários grupos teatrais em Piracicaba, chegando até a criar o seu próprio. Essa experiência de Máximo com a vida artística, potencializada pelo convívio que tinha com outros artistas que se apresentavam em Piracicaba, e por temporadas passadas em São Paulo, onde teve contatos com os grandes circos da época, como o Queirolo, o Piolin e Alcibíades e o Seyssel, forjaram o nascimento do Circo Teatro Universal no final da década de 1920.

Os primeiros meses na estrada tiveram forte presença familiar. Além da companhia da esposa Antonieta e do filho ainda criança, Gumercindo, o irmão Jorge foi o primeiro trapezista do circo. Pouco tempo depois, a irmã Marina Bernardi Pezzati fica viúva e também se junta à companhia, com os filhos Irineu e Laura. Irineu logo se torna o responsável pela parte elétrica do circo, enquanto Laura passa a atuar como partner do mágico Paulo Valvano.

Essa parceria entre o mágico e sua partner acabou em casamento, em 1932. Paulo Valvano foi o braço direito de Máximo durante a primeira década do Circo Teatro Universal, assumindo as funções de secretário, representante e propagandista do circo.

Outro artista pioneiro do Circo Teatro Universal foi Arlindo Pimenta. Entrou com 18 anos, logo após a criação do circo. E saiu mais de 20 anos depois, casado com a também artista Graciana (Gracy) e com 5 filhos nascidos no Universal em diferentes pontos do Brasil (depois o casal teria ainda mais uma filha). A família Pimenta tornou-se uma referência no circo brasileiro; Arlindo destacou-se como palhaço e ator eclético, e os filhos Ubirajara e Tabajara como grandes acrobatas, equilibristas e malabaristas.

Família Pimenta: em cima, Edson, Tabajara, Yara e Ubirajara; em baixo, Sônia, Gracy, Arlindo e Ari.

Família Pimenta: em cima, Edson, Tabajara, Yara e Ubirajara; em baixo, Sônia, Gracy, Arlindo e Ari.

A forte ligação de Máximo Bernardi com o teatro na juventude em Piracicaba fez com que, desde seu início, o Universal desse um destaque muito grande à dramaturgia, se comparado às outras companhias que já operavam no esquema de circo teatro à época. Nesse arranjo, o espetáculo típico era composto por duas partes. A primeira trazia a tradicional apresentação de artes circenses, com números acrobáticos, de equilibrismo, malabares e ilusionismo, entre outros. Depois de um breve intervalo, a segunda parte, com a apresentação de uma peça de teatro. Essa divisão também era conhecida como “palco e picadeiro”. A quase totalidade dos artistas atuava nas duas partes do espetáculo, que durava cerca de uma hora e quarenta minutos.

Durante a década de 1930, as peças de maior sucesso do Circo Teatro Universal foram A Tosca, A Rosa do Adro, Aimée (ou Assassino por Amor), A Máscara de Bronze (ou O Beijo de Judas), A Escrava Isaura e Lágrimas de Homem. Esta última, um drama militar do dramaturgo francês Adolphe d’Ennery, era anunciada em 1933 como “A maior peça até hoje montada em circos brasileiros”. Ficou quase 15 anos em cartaz no Circo Teatro Universal.

Esse posicionamento diferenciado do Circo Teatro Universal mostrou-se um sucesso desde os primeiros anos. Como consequência, melhores condições financeiras, que por sua vez permitiram a contratação de renomados artistas. Por exemplo, em 1932 o Universal já tinha em seu cast a família Martinelli, que por boa parte do século XX foi praticamente um sinônimo de acrobacias aéreas, principalmente em trapézio, no circo brasileiro. Entre 1933 e 1934, já possuía um dos maiores elencos entre os circos nacionais, com cerca de 50 artistas.

Após 4 anos percorrendo o estado de São Paulo, em outubro de 1933 o Universal inicia uma longa excursão de um ano e meio por Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em 1936 entra pela primeira vez em Minas Gerais, e em 1941 chega até Cuiabá, há quase 1.500 quilômetros de sua base paulista – uma verdadeira epopeia naquele tempo, viajando por ferrovias, estradas de terra e rios para finalmente chegar à capital do Mato Grosso a bordo do vapor “Rio Taquari” em 4 de novembro de 1941.

A sequência de mapas abaixo mostra os locais por onde passou o Circo Teatro Universal, desde a sua fundação até 1949.

As viagens do Circo Teatro Universal pelo Brasil entre 1931 e 1949.

Vale comentar aqui a dificuldade para se levantar esse tipo de informação para um circo e suas andanças há 80 anos atrás. A itinerância deixava poucos rastros, documentos são praticamente inexistentes, e as poucas testemunhas oculares, ou seus descendentes, encontram-se espalhadas pelo Brasil. Com isso, é natural que esses mapas apresentem as informações de forma parcial, com várias lacunas de períodos e locais.

Na década de 1930, transporte da elefanta Baby em vagão ferroviário; o primeiro à esquerda é o mágico e secretário do circo Paulo Valvano, e o terceiro, o transformista e bailarino Nilo Durval.

Na década de 1930, transporte da elefanta Baby em vagão ferroviário; o primeiro à esquerda é o mágico e secretário do circo Paulo Valvano, e o terceiro, o transformista e bailarino Nilo Durval.

Em meados da década de 1930, o Universal adquire animais para os seus espetáculos, passando a ser chamada em alguns locais de “companhia equestre-zoológica-dramática”. O “equestre” era a forma de indicar a parte circense do espetáculo, já que na época ainda era comum o uso da expressão “circo de cavalinhos” para se referir ao que conhecemos hoje apenas como “circo”. Além de cavalos, o Circo Teatro Universal teve pelo menos uma elefanta, Baby, e um leão, Paxá.

A qualidade do teatro do Universal atraiu outros grandes artistas na segunda metade da década de 1930. Da família de trapezistas vieram Leopoldo Martinelli, que se sobressaiu como arranjador teatral, e Djalma Martinelli, que anos depois se tornaria um destacado ator na história do circo. Em seguida, entra para o Universal a família Nogueira, que além de artistas com múltiplas habilidades para a parte de picadeiro, trazia também Dario Nogueira, famoso ensaiador de teatro da época (o ensaiador é o que chamamos hoje de diretor de teatro).

Tanto Leopoldo Martinelli quanto Dario Nogueira escreviam suas próprias peças ou adaptavam obras de outros autores. O repertório do circo cresce então de forma significativa, com peças mais sofisticadas e longas, encenadas por atores e atrizes em constante evolução, e cenários continuamente aprimorados.

Fez sua estreia […] em pavilhão armado no Largo do Riachuelo, o Circo Teatro Universal, de propriedade do sr. Máximo Bernardi. “Soldados da Pátria”, peça em 4 atos, arranjo de Leopoldo Martinelli, levou ao circo um grande número de espectadores. Essa peça é baseada num dos episódios da guerra contra o Paraguai. Arlindo Pimenta fez admiravelmente o papel de cínico, encarnando o Capitão Júlio. Desde o início até o final a peça esteve estupenda. Paulo Valvano fez o Tenente Alfredo, e o fez bem. Magníficas as cenas de assalto e fuzilamento nas quais ele emprega toda a sua arte. Foi um galã extraordinário, demonstrando ser um ator de grandes recursos. Pimentel e Máximo Bernardi em cabos Ovídio e Ernesto, respectivamente, estiveram ótimos. Leopoldo Martinelli fez o João, um soldado, e estava estupendo, gozadíssimo mesmo. Edir Martinelli fez com maestria e bastante naturalidade o papel de Cecília, filha do Cabo Ernesto e noiva do Tenente Alfredo. Afinal é uma peça que merece ser apreciada. Para domingo está anunciado mais um espetáculo com novos números de variedades e uma peça inédita […].

Correio Paulistano, 28/2/1937, sobre espetáculo do Circo Teatro Universal em Itapira, SP.

No início da década de 1940, o Circo Teatro Universal torna-se um dos primeiros circos brasileiros a apresentar o número de globo da morte. Nesse mesmo período, com a importância cada vez maior dada à parte teatral, os números com animais são descontinuados. O alemão Rodolfo Heisler é um exemplo da capacidade de adaptação do artista circense a novas circunstâncias: ex-lutador de boxe na Alemanha, Rodolfo chegou ao Brasil como tratador da elefanta Baby, e ao longo dos anos foi redirecionando sua atuação para o teatro, como cenógrafo, pintor, carpinteiro e maquinista.

Por volta de 1942, entra para o circo uma garota que assumiria durante a década seguinte o papel de principal estrela da companhia: Clélia Del Pretti. Nascida em 1928, filha de um casal de circenses, Isabel e Antonio Del Pretti, Clélia ficou órfã de pai com apenas 2 anos de idade, e, devido às dificuldades da mãe conciliar o trabalho com a educação de 4 filhos, foi criada, juntamente com um dos irmãos, por uma tia em São Paulo. No início da  adolescência, quando sua vocação artística já saltava aos olhos, Clélia passa a viver com a família de Máximo Bernardi, amigo da família e seu padrinho.

Clique para ampliar a galeria de fotos de Clélia Del Pretti, a estrela do Circo Teatro Universal.

Artista completa, Clélia era cantora, uma das principais atrizes no teatro, principalmente em papéis de “mocinha”, e atuava nos mais diversos quadros circenses: equilibrista em arame e bolas, volante em números de escada, atiradora em apresentações de tiro ao alvo, acrobata e trapezista.

Outro artista múltiplo que adquiriu grande fama entre o público do Circo Teatro Universal foi Solano Gimenes. Equilibrista e malabarista de “mão cheia”, Solano desenvolveu números únicos, principalmente com escadas e com os chamados “jogos icários”, que pouquíssimos artistas da época, ou mesmo posteriormente, conseguiram imitar.

O grupo de artistas de renome do Circo Teatro Universal incluía também, entre outros, a família Castelo, malabaristas espanhóis; Anselmo Escobar, o célebre palhaço Palpitoso; a família Marrocos (Américo, Juracy e a filha Amercy), sensacionais acrobatas e paradistas; o formidável equilibrista, acrobata e saltador Francisco Stringhini, que posteriormente se tornaria professor de várias gerações de circenses; e o imitador e cômico caipira Henrique Dias Júnior – quem assistiu suas apresentações afirma que era um artista do mesmo nível, se não melhor, que o famoso Mazzaropi.

Em uma época em que as rádios ainda engatinhavam, e a maioria das cidades tinha que se contentar com o som abafado dos serviços de alto-falantes, o Circo Teatro Universal levava música de qualidade ao público em um quadro chamado “A Hora do Rádio”, onde grandes cantores do elenco do próprio circo, ou então artistas famosos, interpretavam os sucessos do momento.

Entre as estrelas da música popular da época que se apresentavam frequentemente no Universal, Vicente Celestino e as duplas Torres e Florêncio, Tonico e Tonico, e Cascatinha e Inhana.

Do grupo de cantores do próprio circo faziam parte Clélia Del Pretti, Wilson Nogueira, Marina Escobar, Dinorá Nogueira e a dupla/casal René Bervique e Dinorá Pimenta, grandes intérpretes de tangos argentinos e canções mexicanas tão em moda na época, como Adiós Pampa Mía, Caminito e Cielito Lindo.

Clique para ampliar a galeria de fotos do Circo Teatro Universal e dos artistas que fizeram a sua história.

Esse elenco, formado por brilhantes artistas de circo e de teatro, atingiu seu apogeu em meados da década de 1940. O Circo Teatro Universal chegou a ter quase 80 componentes e ocupar 5 vagões ferroviários exclusivos, ou mais, para o transporte de seu material.

Apesar de parte dos artistas ter restrições quanto ao rigor com que Máximo Bernardi administrava o circo e, em alguns casos, a salários considerados baixos, aparentemente a gestão do empresário era reconhecida pela maioria dos artistas. Raro era o caso de uma família de artistas trocar o Universal por outra companhia, e Máximo e Antonieta eram frequentemente convidados para serem os padrinhos das crianças nascidas no circo.

A notoriedade da dramaturgia do Circo Teatro Universal era tal que  grandes companhias brasileiras, como a de Procópio Ferreira, se apresentavam frequentemente em seu palco, seja usando a estrutura do circo para levarem suas peças às cidades do interior, seja se apresentando em conjunto com o grupo de artistas do Universal.

Nesse período, o circo tinha um repertório com cerca de 50 peças diferentes, sempre prontas para serem colocadas em cena. Isso possibilitava que a companhia permanecesse, se necessário, um ou dois meses numa mesma cidade, apresentando espetáculos diferentes a cada dia. Nos últimos anos da década de 1940 as peças de maior sucesso eram A Canção de Bernadete, Soldado da Pátria, Filho das Ondas, Sansão, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mestiça e Culpa dos Pais.

O Circo Teatro Universal era considerado então a melhor companhia de teatro se apresentando em circos no Brasil. Mas tudo mudaria de forma repentina em 12 de dezembro de 1949.

A tromba d’água

O Circo Teatro Universal havia estreado mais uma temporada em Americana no dia 15 de outubro – o circo já havia estado na cidade pelo menos duas vezes, em julho e agosto de 1933, e em fevereiro de 1939. Estava instalado em um dos terrenos usado por circos na época, localizado no quadrilátero formado pelas ruas Fernando Camargo, Rui Barbosa e Washington Luís, e pela avenida Dr. Antônio Lobo. A exata localização do circo, indicada na imagem abaixo, corresponde à área compreendida atualmente pelo estacionamento da agência central do banco Bradesco e pela rua Joaquim Luiz de Matos, que em 1949 ainda não existia.

Americana, 1950: vista aérea da região central da cidade; o pin vermelho indica a exata localização do Circo Teatro Universal em dezembro de 1949.

Americana, 1950: vista aérea da região central da cidade; o pin vermelho indica a exata localização do Circo Teatro Universal em dezembro de 1949.

Apesar do Córrego do Parque atravessar o terreno, sob outros aspectos era uma área atrativa para a montagem do pavilhão – localizado na região central e quase completamente fechado por muro na Rua Rui Barbosa e por casas e prédios comerciais nas demais ruas (incluindo o edifício dos futuros Cine e Hotel Cacique, que em 1949 se encontrava em construção), garantindo maior privacidade aos artistas que se alojavam em barracas ao redor do circo e também minimizando os problemas com “penetras”. A única abertura maior no perímetro do terreno era uma extensão de cerca de 40 metros na rua Washington Luís, abaixo do cinema em obras, utilizada para a entrada e saída do público.

O riscos de enchentes e inundações, presente em várias cidades onde circos eram montados em locais baixos ou próximos a rios, fazia com que várias famílias não se alojassem em barracas nesses locais, mas sim em casas alugadas por temporada. Já outras tinham por hábito sempre alugarem esses imóveis, independente do local onde a lona do circo fosse levantada. Com o Circo Teatro Universal em Americana não foi diferente: das cerca de 75 pessoas que se encontravam na cidade, aproximadamente 50 estavam alojadas nas barracas, e as demais em residências localizadas em vários pontos da cidade. Entre elas, as famílias dos palhaços do circo, o clown Pimenta (Arlindo Pimenta) e o augusto Palpitoso (Anselmo Escobar).

Clique aqui para visualizar o provável elenco completo de artistas e funcionários do Circo Teatro Universal que se apresentava em Americana naquela temporada, bem como as atividades e principais números executados por cada um.

Durante a maior parte do dia, o 12 de dezembro de 1949 foi uma segunda-feira comum, com céu límpido e clima típico do final de primavera. A cidade já vivia o clima das festas de final de ano, com grande movimento do comércio e com as tecelagens ainda trabalhando em regime de final de ano para atender às últimas encomendas para o Natal.

Por volta das 20 horas o tempo muda rapidamente e começa uma chuva forte, com duração de cerca de trinta a quarenta minutos. Essa tempestade foi suficiente para fazer com que as pessoas que se encontravam nas ruas retornassem às suas casas ou procurassem um abrigo seguro.

Já no Circo Teatro Universal, o que se passava nesse momento é o maior ponto de divergência entre as fontes documentais e testemunhais consultadas para esse trabalho. Segunda-feira era o dia de folga dos circenses em todo Brasil. Salvo raras exceções, não havia espetáculos nesse dia da semana. E para alguns era isso o que teria acontecido naquela segunda-feira em Americana.

Já outra parte das fontes indica que sim, haveria circo naquela noite, para aproveitar o movimento da cidade nas proximidades do final de ano e o período de férias escolares. Nesse caso, a chuva iniciada às 20 horas teria levado Máximo Bernardi a se reunir com seus principais auxiliares e decidido pela suspensão do espetáculo daquela noite.

Qualquer que seja a versão correta, o fato é que naquela noite de segunda-feira não houve espetáculo no circo, e, passada a chuva inicial, todos os artistas e funcionários já estavam recolhidos às suas barracas ou casas.

Houve a seguir um período de cerca de 15 minutos de calmaria. Foi então que, pouco antes das 21 horas, o temporal retornou com uma força descomunal – uma chuva torrencial, concentrada e contínua, com fortes ventos e um volume de água nunca visto até então pelos moradores da cidade. Foram duas horas ininterruptas de uma verdadeira tormenta, com o ápice ocorrendo entre 21 e 22 horas.

A concentração das chuvas na área central da cidade e seus arredores foi tal que em Carioba e em Nova Odessa praticamente não choveu, apesar de ser possível escutar dessas localidades os sons da tempestade em Americana. Na época, a estação meteorológica mais próxima estava em Campinas, e registrou durante todo o dia 12 de dezembro insignificantes 2,2 mm de chuva.

Apesar de ter entrado para a história como a “tromba d’água”, não foi esse fenômeno que aconteceu em Americana naquela noite. Popularmente, essa terminologia é usada para descrever, de forma inapropriada, uma chuva forte e limitada a uma determinada região. Mas tromba d’água é na verdade um fenômeno semelhante a um tornado; ao contrário desse último, que se forma sobre a terra, aquela se forma a partir de nuvens sobre o mar ou outros grandes corpos d’água. O vórtice da tromba d’água é visualmente semelhante ao do tornado, vindo daí a origem do termo pela associação à tromba de um elefante.

Como já descrito, o relevo da região do Córrego do Parque (a atual Avenida Brasil) favorece fortemente a afluência das águas pluviais que descem das encostas para o vale. E não foi diferente naquela noite. A tempestade também alcançou essa região, fazendo com que um gigantesco volume de água fluísse para o córrego ao longo dos três quilômetros de extensão do vale. A enxurrada ia se avolumando continuamente conforme se aproximava da região central; algumas testemunhas falam de um turbilhão de água ou de uma enorme onda.

A força das águas provocou também o rompimento parcial da barragem do Parque Ideal, localizada altura da atual ponte da rua Padre Epifânio Estevam. Com isso, um grande volume extra de água foi adicionado ao já imenso vagalhão.

A onda de água formada no vale do Córrego do Parque avançava naquela noite com uma força incomum, danificando ou destruindo tudo o que encontrava pela frente. O leito e os poucos trechos canalizados do córrego não dão conta nem mesmo de uma pequena parcela da água. A área mais atingida pelo ímpeto da enxurrada, e depois por uma grande inundação, foi a parte baixa da região central, desde aproximadamente a rua Fernando Camargo até a várzea do ribeirão Quilombo. Em alguns trechos o nível da água alcançou mais de um metro e meio de altura.

Dezenas de prédios residenciais, comerciais e industriais foram severamente danificados; alguns deles foram parcial ou completamente destruídos. Muitos muros e postes foram derrubados, e árvores arrancadas do solo, levando com elas até mesmo suas raízes. A correnteza avassaladora abria sulcos de mais de um metro de profundidade nas ruas de terra e arrancava as pedras das ruas calçadas. As poucas ruas da região central que naquele mesmo ano de 1949 começavam a receber asfalto, tiveram seu pavimento destruído em vários pontos.

Veículos foram virados e carregados pela enxurrada. Um caminhão de Piracicaba, estacionado na Rua Washington Luís com uma carga de cerca de 6 toneladas, foi arrastado pelas águas por mais de 100 metros, vindo a parar apenas nas proximidades da estação ferroviária.

O Hotel dos Viajantes, na época o principal da cidade, localizado na avenida Dr. Antônio Lobo, esquina com Washington Luís, teve várias de suas dependências destruídas. A parte traseira do hotel ruiu e o prédio foi totalmente inundado; a ocupação naquela noite era bastante alta, e os hóspedes perderam praticamente todos os seus pertences. Outro prédio bastante atingido foi a sede da Companhia Paulista de Força e Luz, localizado quase em frente à estação ferroviária. Atrás do prédio principal havia um depósito com uma grande quantidade de material elétrico, que foi quase que totalmente perdido com a invasão das águas.

A então Companhia Paulista de Estradas de Ferro também experimentou a força da enxurrada. A estação foi devastada, com estragos significativos nas plataformas, na área de escritórios, e no pátio e jardins frontais. Já os trilhos foram cobertos pelas águas e tomados por lama e escombros. O tráfego de trens foi completamente paralisado, nos dois sentidos.

As dezenas de fábricas na área da avenida Dr. Antônio Lobo e nas região além da linha férrea, nas proximidades da rua Carioba, também foram severamente golpeadas pela enxurrada, pela inundação e pelo barro. Os maiores prejuízos ocorreram na Tecelagem Santa Mônica, Indústrias Zanaga, Tecelagem Irmãos Battistuzzi e Tecelagem Cairu.

Com o alerta dado pela chuva das 20 horas, a maioria dos moradores da cidade já estava abrigada em suas residências ou em outros locais mais seguros quando do auge do temporal. Mas dezenas de casas em áreas mais baixas foram invadidas pelas águas. Os moradores, quando possível, tentavam se proteger subindo para pavimentos superiores ou até mesmo para os telhados. Outros abandonavam as casas e procuravam por refúgio em áreas não alagadas da cidade.

Se os prédios residenciais e comerciais da cidade, em sua maioria sólidas edificações, sofriam com a força das águas, é de se imaginar a situação dramática enfrentada pelo Circo Teatro Universal.

O até então adequado terreno para a montagem de circos se mostrou uma armadilha. Após passar por um pequeno trecho canalizado sob a rua Rui Barbosa, o imenso volume de água do Córrego do Parque naquela noite adentrava o terreno onde a calha voltava a correr a céu aberto. Em um primeiro momento, a preocupação era com a descomunal enxurrada e com o transbordamento que atingia as áreas mais próximas do leito. Depois, a preocupação passa a ser com a elevação do nível da água dentro do terreno.

Dois dos quatro lados do terreno eram totalmente tomados por construções (rua Fernando Camargo e avenida Dr. Antônio Lobo) o que dificultava o escoamento da água. Em relação à rua Rui Barbosa, o terreno estava localizado em um desnível de cerca de dois metros e meio, o que obviamente impedia qualquer fluxo de saída da água. Restava portanto a abertura da rua Washington Luís. Porém, com o acúmulo e a elevação do nível das águas nessa parte mais baixa da cidade, que inclui a região onde a avenida Dr. Antônio Lobo e a rua Washington Luís se encontram, aquela única alternativa para a saída da água foi praticamente “selada”, fazendo com que o terreno praticamente se transformasse em uma lagoa.

Com uma estrutura composta de mastros metálicos, madeira e lona, o circo não teve chances na terrível luta que empreendeu contra a intensidade da chuva, os ventos, a enxurrada e, por fim, a enorme pressão exercida pelo movimento das águas represadas no terreno.

A destruição foi total, tudo veio abaixo. As barracas foram as primeiras a sucumbir. O madeirame e outras partes maiores da estrutura do circo carregados pela correnteza ajudaram a despedaçar prédios próximos, como os escritórios e armazéns da CPFL. Equipamentos e aparelhos utilizados nos espetáculos, veículos, todo o guarda-roupas e cenários do teatro, bagagens e objetos pessoais foram destruídos e levados pelas águas. Do que restou, quase tudo estava imprestável.

Os trabalhos de resgate

Em 1949 Americana não tinha corpo de bombeiros, defesa civil, hospital ou qualquer outra organização voltada à atuação em ocorrências do porte da ocorrida em 12 de dezembro. Em casos menores, a reação era comandada pela polícia – um delegado, uma pequena estrutura administrativa e alguns praças da Força Pública e da Guarda Civil do Estado – pela prefeitura e pelos médicos locais.

Avenida Dr. Antônio Lobo, c. 1949: o soldado Oswaldo da Silva Moraes ao lado de dirigentes da Auto Viação Americana – Amadeus Elias, Oswaldo Elias e Antônio Elias Neto.

Avenida Dr. Antônio Lobo, c. 1949: o soldado Oswaldo da Silva Moraes ao lado de dirigentes da Auto Viação Americana – Amadeus Elias, Oswaldo Elias e Antônio Elias Neto.

Naquela noite, tanto o delegado Aldo Grandinetti quanto o prefeito Antônio Pinto Duarte não se encontravam na cidade. Coube ao farmacêutico e suplente de delegado, Joaquim Pupo, com o apoio do escrivão da delegacia, João Batista Filho, dar início ao socorro às vítimas.

Um dos praças, o soldado Oswaldo da Silva Moraes, fazia naquela noite o policiamento de uma sessão de cinema. Ao notar a força da enxurrada que descia pela rua 30 de Julho, Oswaldo imediatamente dirigiu-se à parte baixa da cidade, ciente da gravidade dos estragos que a elevação das águas do Córrego do Parque poderia provocar.

Atingindo a região do cruzamento das ruas Fernando Camargo e Rui Barbosa, por lá permaneceu pelas próximas horas, lutando heroicamente para resgatar pessoas atingidas pela violência das águas, impressionando os presentes pela sua determinação, arrojo e capacidade de ação. Usando cordas e outros meios improvisados naquele momento, e contando com a ajuda de alguns moradores que deixaram suas residências para ajudá-lo, Oswaldo resgatou crianças e adultos ilhados pelas águas, e salvou diversas pessoas carregadas pela enxurrada. De acordo com observadores, pelo menos três desses regatados teriam morte certa sem a ação do soldado.

O Tiro de Guerra 105 (atual 02-045) também teve atuação destacada nas operações de salvamento e resgate. Na então sede da corporação (praça 15 de Novembro, esquina com a rua Rui Barbosa), a instrução daquele dia 12 de dezembro já caminhava para o fim quando irrompeu a tempestade. Percebida a gravidade da situação , o instrutor, 1º Sargento João Batista de Godoy, formou e liderou um grupo de voluntários que agiu em vários pontos do centro da cidade para o salvamento, resgate e todo tipo de auxílio à população.

Assim como o soldado Oswaldo da Silva Moraes, os atiradores livraram pessoas que eram levadas pela correnteza, e também salvaram outras ameaçadas pelo aumento do nível das águas dentro de suas próprias casas. Entre esses resgatados, ficaram registradas as famílias do futuro prefeito de Americana, Abrahim Abraham, em sua residência à rua Rui Barbosa, bem ao lado do canal do Córrego do Parque, e do farmacêutico Elpídio Brian, à rua Fernando Camargo. Essa última se refugiou no segundo pavimento da casa, e o resgate teve que ser feito pelo telhado.

Ao contrário do que diziam os relatos que predominaram durante as últimas sete décadas em Americana, apenas uma parte da turma de atiradores de 1949 participou das operações de salvamento dos atingidos pela catástrofe. Tendo iniciado suas atividades em 1947, por muito tempo o Tiro de Guerra de Guerra formou, a cada ano, uma quantidade de atiradores significativamente maior do que as turmas mais recentes – esse número chegou a 568 atiradores no ano de 1978, contra apenas 100 por ano a partir de 2002 até hoje.

O grande número de atiradores fazia com que essas turmas fossem divididas em grupos menores para viabilizar a instrução e outras atividades. Em 1949 isso não foi diferente. Naquele ano, o Tiro de Guerra de Americana formou 226 atiradores (clique aqui para conhecer os nomes de todos eles).

Essa turma foi dividida em duas companhias, que, em muitas ocasiões, tinham horários e locais diferentes de instrução. Não há registros de quais atiradores, precisamente, estavam em instrução naquele final de tarde / início de noite. Além disso, no momento da formação do grupo de voluntários, alguns atiradores já haviam deixado a sede da corporação, enquanto outros, preocupados com suas famílias, dirigiram-se apressadamente às suas casas.

Passados 70 anos, é missão impossível saber com certeza quais atiradores estavam de fato lutando contra as águas na noite de 12 de dezembro de 1949. Algumas dezenas, com certeza. Muitas dezenas, talvez.

Porém, um esquecido informe emitido em janeiro de 1950 pelo general comandante da 2ª Região Militar lança um pouco de luz nessa parte da história. O informe trazia uma Nota de Louvor a 30 atiradores do Tiro de Guerra de Americana, pela bravura e pela conduta heroica que tiveram durante as operações de salvamento aos atingidos pelo temporal em Americana.

Atiradores citados na Nota de Louvor emitida pela 2ª Região Militar em janeiro de 1950
Alcides BarretoHomero GiraldiOswaldo Frezzarin
Alcides GonçalvesJoão Baptista GobboPaulo Santarosa
Alvaro ManzziJoão de Souza MorgadoRicieri Pavan
Antonio DeganiJosé StephaninRubens Ricardo
Antonio MartinsJuarez AranhaSaul Guazzelli
Ary GiordanoLuiz Mendes JúniorSebastião Pompeu
Carlos Rodrigues GrilloLyrio Portella FontesSeverino Caseta
Claudio TorineNelson Alves MoreiraWady Rameh Saab
Eloy SuziganNestor RanieriWalfredo Françozo
Essio OrtolanoOsmar BertierWilson Delarmelin

Um aspecto extremamente importante naquela noite foi o fato da rede elétrica da cidade ter resistido bravamente à força da tempestade. A extensão da tragédia com certeza teria sido maior se tudo tivesse acontecido na mais completa escuridão. Não faltou luz durante a noite e a madrugada, com exceção de poucos pontos localizados. Já os telefones funcionaram até o início da madrugada, quando equipamentos foram danificados pelas águas e a comunicação interrompida.

E foi por telefone que uma providencial ajuda externa foi solicitada. O Corpo de Bombeiros de Campinas recebeu o pedido de socorro vindo de Americana por volta das 23 horas. Uma guarnição com 8 homens foi imediatamente despachada para o município vizinho, trabalhando durante toda a madrugada e o dia 13 em resgates e na prevenção de novos acidentes causados por prédios, muros e outras estruturas danificadas. A delegacia regional de polícia também foi acionada, tendo partido para Americana o delegado regional em exercício, Artur Queiroz Guimarães Filho, acompanhado de uma equipe de policiais civis e militares. E a notícia chegou também ao delegado Aldo Grandinetti, que se encontrava em Campinas e voltou imediatamente para Americana.

Além de toda essa estrutura “oficial” de resgate – polícia, Tiro de Guerra, corpo de bombeiros – é fundamental ressaltar o papel do cidadão comum, anônimo, nas operações de resgate e salvamento. Apesar da fúria da chuva e da inundação, vários moradores foram vistos deixando suas casas e arriscando suas vidas para auxiliar outros que mais precisavam naquele momento.

As vítimas

A maior tragédia causada por fatores naturais na história de Americana provocou seis mortes. Quatro ocorreram na região chamada, à época, de Chácara Faraone, que corresponde aproximadamente ao atual Jardim Girassol, entre as ruas Florindo Cibin e Gonçalves Dias. E as outras duas no Circo Teatro Universal.

Na Chácara Faraone, o ímpeto da tempestade e o furor da enxurrada que fluía pelo declive acentuado fizeram desabar um prédio que se dividia em duas residências, ocupadas por famílias de operários atraídos para Americana pela pujança da indústria têxtil.

Em uma delas vivia o casal José Pinto de Oliveira e Maria Luiza Gomes, provenientes da região de Araras e Leme, e os filhos Eva e Norberto. E na outra moravam Sebastião Bueno e Madalena Mariotti Bueno (mais conhecida por Helena), ele de Limeira e ela de Rio Claro, com quatro filhos ainda crianças.

Não se sabe exatamente a dinâmica detalhada dos acontecimentos, mas com o desmoronamento do prédio, as duas mulheres e mais duas crianças foram tragadas pela enxurrada e em seguida pelas águas do Córrego do Parque. As quatro morreram afogadas.

Os corpos de Madalena, de 38 anos, e de seu filho José Carlos Bueno, de 3 anos, foram encontrados na piscina do Parque Ideal, situada no extremo da atual praça Parque Ideal, bem próxima da rua Padre Epifânio Estevam. O de Madalena, ainda durante a noite, enquanto o de José Carlos, apenas por volta das 9 horas da terça-feira.

O mesmo fim trágico tiveram Maria Luiza, 38 anos, e sua filha Eva Pinto de Oliveira, de apenas 2 anos. O corpo da mãe foi encontrado no Parque Ideal, próximo à piscina, na noite do dia 12; o da pequena Eva, ao amanhecer do dia seguinte, no pátio da Estação Ferroviária, depois de ter sido carregado por um quilômetro e meio pelas águas.

No Circo Teatro Universal, o avançar da tempestade e da violência das águas foi deixando claro para todos que nada poderia ser salvo, com exceção das próprias vidas. A configuração do terreno, já comentada anteriormente, deixava poucas opções para os artistas e funcionários escaparem.

A rota de fuga factível era um pequeno trecho de cerca de 10 metros da lateral do terreno, encostada na rua Rui Barbosa, espremido entre o leito do Córrego do Parque e o muro dos fundos das residências da rua Fernando Camargo. O caminho passava por subir o barranco de cerca de 2 metros e meio entre o terreno e o nível da rua, e então alcançar uma passagem ali existente que permitia chegar à rua.

Mas nem todos conseguiram chegar tão facilmente a esse local. Muitos ficaram presos pelas águas e por destroços em pontos distintos do terreno, e tiveram que lutar muito para conseguirem chegar ao ponto de escape. O grande número de crianças deixava a situação ainda mais dramática.

Alguns foram levados pela correnteza no sentido da rua Washington Luís, salvando-se ao se agarrarem a qualquer estrutura fixa que encontraram pela frente. Já o eletricista do circo, Irineu Pezzati, foi “engolido” pela torrente de água e carregado por mais de 200 metros antes de colidir violentamente contra um vagão com toras de madeira que se encontrava estacionado nos trilhos da ferrovia. Irineu foi encontrado horas depois, junto ao vagão, em estado lastimável e sem sinais vitais aparentes. Foi dado como morto, mas no trajeto para a delegacia de polícia, que também fazia às vezes de necrotério à época, percebeu-se que Irineu ainda vivia.

A parte mais trágica dessa passagem da história do Circo Teatro Universal estava reservada para a família do notável artista Solano Gimenes. Justamente o mesmo núcleo de pessoas que naquele ano de 1949 enfrentava um outro drama familiar, relatado brevemente a seguir.

Solano Gimenes, em foto com sua partner no número de escada sete, Dalva Escobar.

Solano Gimenes, em foto com sua partner no número de escada sete, Dalva Escobar.

Solano Gimenes entrou para o Circo Teatro Universal na primeira metade da década de 1940. Casado com Luiza de Jesus, os dois filhos do casal nasceram no próprio circo: Luiz em Uberlândia, em agosto de 1944, e Regina Berenice em Martinópolis, em janeiro de 1947. As lembranças dos colegas de circo indicam para um casamento bastante conturbado, com discussões frequentes.

Em meados de 1948, passa a trabalhar no Universal um ator, do qual a história preservou apenas seu primeiro nome: Alberto. Sua especialidade eram os papéis de “galã”. Em pouco tempo de circo, Alberto se afeiçoou pelos encantos de Luiza de Jesus – uma linda mulher de pele clara, cabelos quase loiros e olhos verdes. E Luiza, por sua vez, correspondeu às investidas.

O resultado desse flerte se materializou em São Carlos, no final daquele mesmo 1948: Alberto e Luiza simplesmente desapareceram, sem deixar rastros. Iludida pelas promessas de Alberto, Luiza abandonou o circo, o casamento com Solano e os dois filhos – Regina Berenice ainda não havia completado 2 anos.

O caso naturalmente provocou grande revolta no circo, com todos se solidarizando com a situação de Solano Gimenes. A indignação do irmão de Luiza, Domingos de Jesus, mais conhecido no circo como Caçambinha, foi ainda maior. Domingos era um auxiliar para serviços gerais no circo, um faz-tudo sem especialidade definida, ou, de acordo com a gíria circense, um “peludo”. Após a fuga da irmão, ele se tornou ainda mais próximo de Solano e continuou morando com o cunhado e os sobrinhos.

Pouco tempo depois Solano se aproxima de uma funcionária do circo que muito o ajudava, juntamente com Domingos, nos cuidados com os filhos: Alzira Gonçalez. Em questão de meses, durante o ano de 1949, os dois se apaixonaram e passaram a viver juntos, com Alzira desenvolvendo um grande amor pelas duas crianças e tratando-as como seus verdadeiros filhos.

Voltando à noite de 12 de dezembro de 1949, enquanto Solano e o cunhado Domingos ajudavam os colegas em que se encontravam em situação mais perigosa, Alzira e Clélia Del Pretti traziam em seus colos as duas crianças. Clélia carregava Luiz, e depois de muito esforço conseguiu alcançar e suplantar o barranco e passar pelo muro. Alzira, grávida de seu primeiro filho com Solano, seguia na mesma direção quando foi surpreendida pela queda de um mastro. O choque fez com que ela desmaiasse e perdesse Regina Berenice de seus braços; prestes a se afogar, Alzira foi salva por Domingos de Jesus. Infelizmente, Domingos não conseguiu mais encontrar e tirar a sobrinha das águas. Regina Berenice morreu afogada, a pouco menos de um mês de completar 3 anos de idade.

Aos 23 anos, e com uma compleição física apenas mediana, magro, cerca de 1,70 metros de altura e, assim como a irmã, pele e cabelos claros, Domingos se agigantou no pior momento das vidas de muitos de seus colegas, e também da própria existência do Circo Teatro Universal. Excelente nadador, Domingos arriscou a própria vida diversas vezes ao se jogar no meio da avalanche de água para salvar adultos e crianças. Foi ousado, valente e destemido, bem como um exemplo inesquecível de bravura para todos que testemunharam seu esforço descomunal para resgatar seus companheiros de circo. Essas mesmas testemunhas relatam que até 12 pessoas deviam suas vidas a Domingos de Jesus.

Depois de aproximadamente uma hora de uma luta insana contra as águas, enquanto retornava após deixar mais um resgatado em local seguro, Domingos foi surpreendido pelo desmoronamento de toda extensão do muro da rua Rui Barbosa, que não suportou o volume e a pressão da água que descia pela rua, atingindo-o em cheio. Acabavam ali os atos heroicos e a vida de Domingos de Jesus.

O registro do óbito de Domingos de Jesus no Cartório de Registro Civil de Americana.

O registro do óbito de Domingos de Jesus no Cartório de Registro Civil de Americana.

Os dias seguintes

Após um período de chuva mais fraca e intermitente, entre as 23 horas e meia-noite, uma nova tempestade caiu logo no começo da madrugada, porém com intensidade e duração menores que a principal. Durante esse período, e depois durante toda a madrugada, continuaram os trabalhos de resgate e acolhida dos desabrigados. Era cena comum grupo de pessoas revolvendo a água barrenta em busca de desaparecidos e objetos que pudessem ser salvos.

Como a grande tempestade ocorreu de forma bastante concentrada sobre região central de Americana, o Ribeirão Quilombo mantinha o seu nível normal até a entrada da cidade, e logo conseguiu escoar o enorme volume de água das áreas alagadas pelo Córrego do Parque. O nível das águas baixou rapidamente durante a madrugada, e pela manhã não havia mais inundações.

Assim, as fotos publicadas durante décadas em Americana como sendo da tromba d’água de 1949, mostrando ruas debaixo d’água e pessoas e veículos atravessando áreas alagadas, na verdade não são desse episódio, mas sim de outras enchentes provocadas por chuvas que também atingiram as cidades à montante no curso do Quilombo – os atuais municípios de Nova Odessa, Sumaré, Hortolândia, Paulínia e Campinas – provocando um grande aumento do nível de água do ribeirão.

A cidade amanheceu em transe na terça-feira 13 de dezembro, buscando compreender o que havia se passado. Milhares de pessoas foram às ruas para observar a destruição, os trabalhos de busca e a remoção dos entulhos. A quase totalidade do comércio e da indústria da cidade não abriu suas portas; os funcionários ajudavam na desobstrução das ruas e na limpeza dos prédios invadidos pela água e pela lama.

Clique para ampliar a galeria de fotos da destruição provocada pela tromba d’água.

O dilúvio da noite anterior deixara 43 famílias desabrigadas – um total de 264 pessoas – contando aí os moradores da cidade e parte do elenco do Circo Teatro Universal. Entre os desabrigados da cidade, diversos foram acolhidos em casas de parentes, e os demais foram abrigados temporariamente em residências cedidas pela Fábrica de Tecidos Carioba.

Ainda pela manhã, um Comitê de Auxílio às vítimas foi rapidamente formado, com seu centro de operações à Praça Basílio Rangel. Ao longo do dia, e também dos dias seguintes, caminhonetes e caminhões percorreram as ruas da cidade, casa a casa, recolhendo roupas e mantimentos para os desabrigados.

Esse Comitê, que se manteve ativo pelas semanas seguintes, foi liderado pelo comerciante e jornalista Jorge Arbix, e tinha como membros Antônio Camargo Neves, Antônio Zanaga, Aurélio Cibin, Domingo Denucci, Isabel de Campos, Nacim Elias, Thomaz Fortunato e Waldemar Martinelli.

O Serviço de Alto Falantes transmitia notícias para diversos pontos da cidade, além de tocar músicas fúnebres e solicitar que todos colaborassem com o Comitê de Auxílio.

Depois de quase 15 horas de paralização, a primeira composição conseguiu chegar à estação ferroviária às 11 horas da manhã, vinda de Campinas. Por mais 24 horas, os trens só conseguiam atravessar a área atingida em velocidade reduzida. Durante o tempo de paralisação, os trens que se aproximavam de Americana paravam a cerca de dois quilômetros da cidade, sendo os passageiros transportados por ônibus e caminhões até uma composição que já os esperava à mesma distância, do outro lado da estação.

O sepultamento das vítimas ocorreu às 15 horas. Devido ao estado de comoção e à quantidade de pessoas que se encontravam nas ruas, não foi possível realizar qualquer tipo de cerimônia religiosa em alguma igreja da cidade. Os corpos saíram às 14h30 diretamente da Delegacia, na praça 15 de Novembro, para o Cemitério da Saudade.

Milhares de pessoas acompanharam o cortejo. Na entrada do cemitério, o padre Nazareno Magi, que no começo do ano havia assumido a Igreja Matriz de Santo Antônio, com a morte do padre Epifânio Estevam, realizou uma rápida cerimônia de exéquias. Em seguida a multidão se dividiu para acompanhar os seis sepultamentos.

Clique para ampliar a galeria de fotos dos funerais das vítimas da tromba d’água.

As estimativas sobre o prejuízo provocado pela tromba d’água foram evoluindo durante as semanas seguintes, até convergirem para um valor de 20 milhões de cruzeiros. Para se ter uma ideia da ordem de grandeza desse valor, a arrecadação total da Prefeitura de Americana durante o ano de 1950 foi de pouco mais de 14 milhões de cruzeiros. Ou seja, os prejuízos causados pela tempestade foram equivalentes a um ano e meio da arrecadação municipal.

Na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, logo nos dias seguintes à tragédia, foi aprovado um projeto em regime de urgência do deputado Romeiro Pereira, concedendo um auxílio de um milhão de cruzeiros para Americana. Devido à burocracia, esse dinheiro só entrou efetivamente nos cofres da prefeitura em junho de 1951.

Câmaras municipais também se sensibilizaram com o flagelo provocado pela tempestade. A de São Paulo aprovou uma doação de 100 mil cruzeiros. Já a Câmara Municipal de Campinas, em sessão no dia 15 de dezembro, aprovou um auxílio de 20 mil cruzeiros para Americana. Autor do projeto para concessão do auxílio: vereador Ângelo Bolsonaro, avô do atual presidente da República Jair Bolsonaro.

No sábado dia 17 de dezembro houve uma grande homenagem aos atiradores do Tiro de Guerra pelo empenho e coragem que demonstraram na segunda-feira anterior durante os trabalhos de salvamento das vítimas. Em uma cerimônia realizada na praça Basílio Rangel, na presença de autoridades civis e militares, e com grande aglomeração popular, o momento mais emocionante foi a leitura de um poema intitulado Heróis!, em homenagem aos atiradores, feita pelo próprio autor, o poeta americanense Walter José Faé (clique aqui para conhecer o poema).

Essio Ortolano e Nestor Ranieri, dois dos trinta atiradores reconhecidos pelo comando da 2ª Região Militar pela conduta heroica na noite de 12/12/1949.

No Circo Teatro Universal, os dias seguintes também foram dedicados a sepultar os mortos, cuidar dos mais atingidos pela tragédia e iniciar os trabalhos de reconstrução.

O eletricista Irineu Pezzati era talvez o ferido mais grave em toda cidade. Em estado crítico, foi levado ainda durante a madrugada para a Santa Casa de Piracicaba, onde conseguiu se recuperar.

As cerca de 50 pessoas que viviam nas barracas do circo estavam obviamente desabrigadas. A maioria foi alojada durante as semanas seguintes no salão do Rio Branco Futebol Clube, sendo atendidas durante esse período com roupas, alimentos e outros itens fornecidos pelo Comitê de Auxílio às vítimas. Outros artistas foram hospedados por amigos ou admiradores que tinham na cidade.

O proprietário Máximo Bernardi estimava o prejuízo do Circo Teatro Universal em um milhão de cruzeiros. O pouco de material que restou em condições mínimas de uso foi levado para um barracão cedido ao circo, onde foram iniciados os trabalhos de reconstrução.

A cidade de Americana foi imensamente solidária com o Circo Teatro Universal; empresários e comerciantes fizeram doações de todo tipo de material que pudesse ser útil para a recomposição da companhia, como tecido, madeira, lona, ferramentas, tinta e outros. A população também contribuiu por meio de listas de auxílio que circularam por toda cidade.

Durante as semanas seguintes, o elenco de quase 80 pessoas se dividiu em dois grupos. Um menor, com 10 a 15 pessoas, formado por funcionários e artistas que tinham habilidades relevantes para os trabalhos de reconstrução, permaneceu em Americana. Já as demais famílias foram amparadas por diversos outros circos que, também tocados pela tragédia enfrentada pelo Universal, ofereceram contratos de trabalho temporários para que os artistas mantivessem sua renda até a reorganização da companhia de Máximo Bernardi.

Outra demonstração de irmandade entre os circos ocorreu com a criação, em São Paulo, de um grupo de apoio ao Circo Teatro Universal. Idealizado pelo ex-mágico do circo, Paulo Valvano, que a essa altura residia em São Paulo, era formado por empresários, jornalistas e artistas ligados ao teatro, rádio e circo (entre eles, o humorista e radialista americanense Lulu Benencase). Nas semanas seguintes, uma série de espetáculos beneficentes foi realizada em circos paulistanos, como o Piolin e o Seyssel, e em outros que excursionavam pelo interior, com renda totalmente revertida ao Universal e a seus artistas.

Após alguns dias de trabalho no barracão, quando já havia condições mínimas de serem apresentados números de circo e pequenas peças teatrais com o grupo reduzido de artistas, Máximo Bernardi começou a anunciar esses espetáculos, realizados numa estrutura improvisada no próprio local. Qualquer receita era fundamental naquele momento para contribuir com a reconstrução. Numa forma de homenagear a cidade e a população que tanto vinham contribuindo para a restauração do circo, o empresário muda, durante esse período, o nome da companhia para Circo Teatro Americana.

Americana, fevereiro de 1950: a única evidência da curta existência do Circo Teatro Americana, colhida fortuitamente em fotografia de militares (à esquerda, o Segundo Tenente José Paciulli, Diretor do Tiro de Guerra de Americana).

Americana, fevereiro de 1950: a única evidência da curta existência do Circo Teatro Americana, colhida fortuitamente em fotografia de militares (à esquerda, o Segundo Tenente José Paciulli, Diretor do Tiro de Guerra de Americana).

Cerca de um mês após o fatídico 12 de dezembro de 1949, já havia uma nova lona e uma estrutura mínima para novamente levantar o pavilhão. Obviamente traumatizados pelo ocorrido, procuram um bom terreno, porém agora em lugar mais alto na cidade.

O candidato natural era a praça Basílio Duarte do Páteo, a atual Pio XII. Reservada há vários anos para a construção da nova Matriz de Santo Antônio, apesar da pedra fundamental ter sido lançada em julho de 1945 não havia qualquer sinal da obra no começo de 1950. Mesmo com o terreno totalmente desocupado, a solicitação foi negada pela igreja católica. Instalou-se então o circo nos altos do Jardim Girassol, em frente à primeira caixa d’água do serviço de abastecimento da cidade, em um terreno que alguns meses depois seria denominado como praça Liráucio Gomes.

Assim, na segunda quinzena de janeiro de 1950 a lona da companhia de Máximo Bernardi foi novamente levantada, inaugurando uma nova fase de sua história. O tamanho, ainda reduzido, foi sendo gradualmente ampliado, inclusive com a volta, nas semanas seguintes, da grande maioria dos artistas que estavam temporariamente atuando em outros circos.

Depois de cerca de um mês de apresentações na cidade, ainda como Circo Teatro Americana, instala-se na vizinha Santa Bárbara d’Oeste para uma temporada de mesma duração, agora já com o retorno do nome original de Circo Teatro Universal. Vale a pena comentar que, mesmo numa fase de recomeço, onde ainda dependia do auxílio e solidariedade de outros para se reerguer, a companhia também contribuía com outras causas. Por exemplo, em Santa Bárbara d’Oeste, no dia 26 de março de 1950, o Universal ofereceu um espetáculo beneficente com renda totalmente revertida para o Asilo São Vicente de Paula daquela cidade.

Reconstruído, o Circo Teatro Universal estava novamente pronto para voltar à estrada.

Os anos seguintes

Logo no começo de 1950, os 226 atiradores da turma de 1949 do Tiro de Guerra de Americana foram declarados reservistas de 2ª categoria do Exército Brasileiro, após juramento à bandeira realizado no dia 9 de fevereiro. Ao longo das décadas seguintes, esse grupo, que ficou conhecido como a “turma da tromba d’água”, recebeu vários tipos de homenagens na cidade. A última ocorreu em 12/12/1999, exatos 50 anos depois da tromba d’água, quando 84 atiradores se reencontraram para uma emotiva cerimônia realizada nas instalações atuais do Tiro de Guerra 02-045.

Campinas, 2/12/1950: Oswaldo da Silva Moraes recebe as insígnias de cabo das mãos do Tenente Coronel José Ferreira Lameirão, comandante do 8º Batalhão de Caçadores da Força Pública.

Campinas, 2/12/1950: Oswaldo da Silva Moraes recebe as insígnias de cabo das mãos do Tenente Coronel José Ferreira Lameirão, comandante do 8º Batalhão de Caçadores da Força Pública.

Oswaldo da Silva Moraes também recebeu diversas condecorações e homenagens, militares e civis, nos anos seguintes. Em grandiosa solenidade realizada no 8º Batalhão de Caçadores da Força Pública, atual 8° Batalhão da Polícia Militar do Interior, em Campinas, Oswaldo recebeu as insígnias de cabo, promoção obtida por seus atos de bravura durante a tromba d’água de 1949 em Americana. Dias depois, em outro grande evento, realizado na avenida Dr. Antônio Lobo, o agora cabo Oswaldo recebia da Prefeitura e da Câmara Municipal, diante de uma grande concentração popular, as homenagens da cidade de Americana.

No dia 12 de dezembro de 1951, a rádio Tupi de São Paulo dedicava a Oswaldo o programa “Honra ao Mérito”, que reconhecia semanalmente atos ou obras dignificantes de personalidades brasileiras. E em mais uma homenagem civil, em março de 1954 o cabo Oswaldo de Moraes era condecorado pelo presidente Getulio Vargas com a Medalha de Distinção de Primeira Classe, em ouro, devido a “serviço pessoal extraordinário […] à humanidade [por meio de] socorro prestado com risco da própria vida”.

O cabo Oswaldo da Silva Moraes morreu em São Paulo, em 9 de janeiro de 1956, com apenas 45 anos de idade. Pouco tempo depois, uma rua da Americana, que atravessa os bairros Rasmussen e Nova Americana, foi batizada com o seu nome.

Em 1957, Domingos de Jesus também foi homenageado em uma via da cidade, no Jardim Santana. Domingos teve o seu repouso eterno no cemitério de Americana perturbado em pelo menos três ocasiões nas últimas sete décadas.

A primeira delas se estendeu durante os anos de 1952 e 1953, e foi iniciada pela indignação da opinião pública, depois repercutida em artigos nos jornais, com o descaso com a sepultura do herói que salvou diversas vidas na cidade. Passados dois anos e meio de sua morte, a sepultura continuava da mesma forma, coberta apenas por terra e sem qualquer tipo de identificação.

No final de junho de 1952, o vereador Alcindo Dell’Agnese apresentou um projeto de lei para que a sepultura fosse transformada em perpétua e um túmulo construído no local. Em agosto, a Comissão de Obras e Serviços Públicos sugeriu que, ao invés de um túmulo para Domingos, fosse criado um jazigo municipal, um panteão, com espaço para 20 ou 30 sepultamentos de vultos ilustres do município. Domingos de Jesus seria o primeiro a “ocupar” esse panteão.

Por mais de ano o assunto perdurou em debates na Câmara, entrando e saindo periodicamente da pauta, sem nenhuma decisão. Foi então que entraram em ação Pedro Rita e José Marcelo, dois cidadãos que, sensibilizados com a história de heroísmo de Domingos de Jesus, resolveram agir por conta própria. No dia 12 de dezembro de 1952, exatos três anos da morte do funcionário do Circo Teatro Universal, Pedro Rita adquire os direitos para transformar a sepultura em perpétua. E, meses depois, sem alarde, os dois amigos constroem um túmulo para Domingos de Jesus. Quando a Câmara se deu conta, tudo já estava feito. Aos vereadores só restava arquivar o projeto de lei e desistir da ideia do panteão.

Placa sobre o túmulo de Domingos de Jesus.

Placa sobre o túmulo de Domingos de Jesus.

A sepultura de Domingos de Jesus é a de número 145 na quadra 3 do Cemitério da Saudade, bem próxima à de outra vítima da tromba d’água, Madalena Mariotti Bueno (número 139, na mesma quadra). Os registros e as sepulturas das outras quatro vítimas simplesmente desapareceram no caos em que se transformou o cemitério municipal de Americana durante a administração Diego De Nadai, com roubos de sepulturas, desvios de dinheiro, exumações não autorizadas e desaparecimento de restos mortais.

Outra circunstância a envolver o nome de Domingos de Jesus ocorreu na década de 1970, quando um articulista de um jornal da cidade inventou a lenda do “palhaço-herói”. Baseando-se em relatos fantasiosos que frequentemente vão se amplificando com o distanciamento dos fatos, e flertando com a filosofia jornalística traduzida pela máxima “Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda”, que se tornou célebre no clássico western “O Homem que Matou o Facínora”, o jornalista explorou a história do “palhaço” em vários artigos durante os anos.

Pela facilidade com que o inusitado se propaga, o resultado foi, além do óbvio falseamento dos fatos, a simplificação de uma história complexa para um único episódio, exótico, e a despersonalização do próprio Domingos de Jesus e dos demais envolvidos nos eventos de 12 de dezembro de 1949. Gerações mais novas, que só tiveram conhecimento da história por essas fontes, têm como referência praticamente única da tromba d’água de 1949 o relato de “uma tempestade que caiu em Americana e de um palhaço que salvou várias pessoas antes de morrer”.

Por último, a memória de Domingos de Jesus foi novamente trazida à tona em 2009. Em um período em que a “venda” de vias públicas estava ameaçando virar praxe em Americana, havia chegado a vez da travessa Domingos de Jesus. Em agosto daquele ano, a Prefeitura envia projeto de lei à Câmara para o fechamento da rua e posterior cessão à Tinturaria e Estamparia Primor. A contrapartida negociada com a empresa era de inacreditáveis 25 mil reais! Apesar da composição da Câmara da época ser totalmente submissa às ordens do executivo, uma intensa pressão da imprensa e da opinião pública fez com que, por apenas um voto, o projeto fosse rejeitado e posteriormente engavetado.

Após sua reconstrução, o Circo Teatro Universal deu seguimento à sua jornada itinerante durante os primeiros anos da década de 1950. Não ousou voos mais distantes, como fez nas décadas anteriores, concentrando-se cada vez mais no interior de São Paulo. Não voltou a ter o mesmo tamanho de antes, e artisticamente não alcançou o mesmo patamar que teve durante seu ápice na década de 1940. Mas continuava sendo um dos mais importantes circos da época.

Foi nesse período que uma antiga lembrança impressionou novamente a coletividade do Circo Teatro Universal: o reaparecimento de Luiza de Jesus, a ex-esposa de Solano Gimenes.

Luiza separou-se de Alberto poucos meses após a fuga e, tempos depois, já estava novamente casada, agora vivendo em Marília. Sentindo-se em situação mais estável, e com o apoio do novo marido, Luiza acionou a justiça para ter a guarda do filho Luiz, que, depois da tragédia de 1949, continuava vivendo com Solano e Alzira no Circo Teatro Universal. O casal, por sinal, a essa altura já tinha um casal de filhos – Carlos e Paula.

Após meses de conflito na justiça entre o antigo casal, foi decisiva, em uma audiência em Marília, a posição convicta do pequeno Luiz, que muito havia sofrido com o abandono pela mãe, revelando que considerava Alzira sua verdadeira mãe e que não se imaginava vivendo longe do pai.Por muitos anos ainda, Luiza tentou uma reaproximação com o filho, sem sucesso. Solano Gimenes e Alzira tiveram 7 filhos e permaneceram juntos por mais de 50 anos. O casamento só terminou com a morte de Solano em 2000, aos 79 anos.

Assim como os outros circos da época, o Universal sofreu com novas formas de concorrência que surgiam ou se fortaleciam durante a primeira metade da década de 1950. O grande desenvolvimento da infraestrutura rodoviária, principalmente no estado de São Paulo, abre diversos novos mercados para as companhias circenses, não atingidos anteriormente quando a única forma viável de transporte era a ferroviária. Como consequência, diversos circos novos são criados para aproveitar essas novas possibilidades, muitos deles por artistas que deixavam seus circos de origem para se aventurarem em um negócio próprio.

Outras formas de concorrência ao circo também se fortaleceram muito durante esse período, como o cinema, o rádio e, ainda em forma embrionária, mas já se antevendo o impacto que teria durante os anos seguintes, a televisão. Essa última foi um fator chave para a decadência, no final dos anos 1950 e durante a década de 1960, da configuração de circo teatro. Os dramas, romances e comédias que as pessoas procuravam nas sessões de teatro estariam em breve disponíveis na sala de casa.

O Circo Teatro Universal, além de enfrentar essa concorrência dos novos circos e das outras formas de entretenimento, sofre também com a saída de famílias que formavam há muitos anos a estrutura central do Universal, como os Pimenta.

Já se aproximando dos 60 anos de idade, e cansado depois de mais de 25 anos excursionando com seu circo por várias regiões do Brasil, Máximo Bernardi pensa frequentemente em parar. A oportunidade surge em 1954, em Ibitinga, interior de São Paulo, onde faz amigos e vislumbra oportunidades comerciais e de uma melhor qualidade de vida. Ao mesmo tempo, surge um comprador para o circo.

Com  venda do circo, outros artistas também resolvem deixar o Universal. Preocupado com esse movimento, o novo proprietário faz constar em contrato uma exigência de que a estrela da companhia, Clélia Del Pretti, continuasse por pelo menos mais um ano no circo. Também sentindo que a sua hora de deixar a vida circense se aproximava, Clélia cumpriu o prazo combinado e, por volta de 1956, deixa o circo e fixa residência em Bauru. O elenco e o repertório do circo vão se reduzindo cada vez mais até que, debilitado, o Universal baixa sua lona pela última vez por volta de 1957.

Vale comentar aqui mais uma narrativa fantasiosa criada pelo mesmo jornalista de Americana já citado acima no caso do “palhaço-herói”. Nessa outra “história”, ele introduz um elemento bastante comum nas lendas, o “destino traçado”. Em seu relato, dois meses após a tromba d’água o Circo Teatro Universal deixava Americana e partia para a primeira parada de sua nova fase – nas versões originais a cidade seria São Carlos, mas em alguns relatos posteriores foi substituída por Araraquara. Nesse local, logo em uma de suas primeiras apresentações, um grande incêndio teria destruído definitivamente o circo. Máximo Bernardi teria então ficado arrasado com mais essa tragédia, vindo a morrer pouco tempo depois.

Como se viu, nada disso aconteceu.

Logo depois de se estabelecer em Ibitinga, Máximo Bernardi montou um armazém de secos e molhados e, em homenagem ao circo, colocou-lhe o nome de Empório Universal. Depois de algum tempo, vendeu o armazém e viveu tranquilamente, aposentado, por muitos anos ainda. Máximo Bernardi morreu em Ibitinga aos 81 anos de idade, em 1976.

Em Americana, a tragédia de 1949 serviu de agente impulsionador para a realização de grandes obras, com o intuito de mitigar os problemas históricos da cidade com seus rios e com o escoamento das águas pluviais.

Na administração Jorge Arbix, entre 1952 e 1955, aconteceu a canalização subterrânea do Córrego do Parque, entre a ponte da rua Primo Piccoli, atual Praça do Trabalhador, e o encontro com as águas do Ribeirão Quilombo. Todo o antigo curso que atravessava o centro da cidade a céu aberto foi fechado, com as águas passando a correr por uma galeria subterrânea de concreto, de perfil quadrado, com 2 metros de lado. O percurso dessa nova galeria também foi simplificado em relação ao antigo leito: ao atingir a rua Fernando Camargo, o canal seguia agora até a Rui Barbosa e depois em linha reta até o Quilombo.

Por muitos anos essa obra inibiu a repetição do fenômeno da “avalanche” de água do Córrego do Parque invadindo o centro da cidade. Mas a continuação do processo de urbanização, o adensamento populacional e impermeabilização do solo ao longo do vale do córrego fez com que as águas voltassem à região central. Durante as décadas seguintes, obras de retificação do córrego ao longo da atual avenida Brasil, incluindo a instalação de barragens de regularização de nível, ajudaram a mitigar o problema, até que, já na década de 1980, no governo Carrol Meneghel, fosse feita a obra definitiva: a construção de uma nova galeria subterrânea, de capacidade muito maior que a anterior, agora alcançando o Quilombo por sob a rua Rio Branco.

Já as obras de retificação do Ribeirão Quilombo foram atacadas no governo Cid de Azevedo Marques (1960-1963), principalmente no trecho extremamente sinuoso na altura do centro de Americana, responsável por inundações históricas. Com a retificação, houve aumento da calha e da velocidade de escoamento da água, e ao mesmo tempo a diminuição do assoreamento e do nível da água.

A história da tromba d’água ocorrida em Americana no longínquo ano de 1949 foi pródiga em produzir símbolos e deixar marcas.

Marcas de dor nas famílias e amigos das vítimas, marcas nos corpos dos feridos, marcas de destruição na cidade e marcas na memória daqueles que presenciaram as situações apavorantes na noite de 12 de dezembro de 1949. Mas também marcas da reconstrução e das profundas mudanças pelas quais a cidade passou nos anos seguintes, e marcas de coragem e heroísmo de alguns que arriscaram suas vidas para salvar outras vidas.

Setenta anos depois, o episódio da tromba d’água ainda representa uma forte marca na história da cidade de Americana, na memória dos sobreviventes e na imaginação das gerações seguintes.

Marcas: foto recuperada dos escombros do Circo Teatro Universal, mostrando os pais de Clélia Del Pretti, Isabel e Antonio.

Marcas: foto recuperada dos escombros do Circo Teatro Universal, mostrando os pais de Clélia Del Pretti, Isabel e Antonio.

Colaboraram: Amercy Marrocos, Ana Paula Del Pretti, Antonio Valvano, Clélia Del Pretti, Dalva Escobar, Daniele Pimenta, Eduardo Dantas, Flavia Bervique, Gumercindo Rossato Bernardi, Primeiro-Sargento Hugo Leonardo Trajano Leal da Silva, Lais Valencia Gimenes, Laura Helena Valvano, Marcella Pignanelli, Marina Escobar, Nestor Carmelo Ranieri, Tabajara Pimenta e Verônica Tamaoki.

12 comentários sobre “A Tromba d’Água de 1949 em Americana

  1. Como pesquisadora das histórias dos circenses, dos fabricantes da história do circo, quando iniciei a leitura imaginei que seria mais uma narrativa sem pesquisa de fontes.
    Mas, me surpreendi muito positivamente pela qualidade das fontes pesquisadas, bem como pela deliciosa forma narrativa das memórias, fontes, etc.
    Parabéns Alexandre Pignanelli.
    Eu, Erminia Silva junto com Daniel C. Lopes, coordenamos o site https://circonteudo.com, e gostaríamos muito de publicar seu texto.
    Abraços
    Erminia Silva

  2. Incrível esse trabalho de recuperação. Nem consigo imaginar a imensa dedicação necessária para conseguir fazer o levantamento. Poderia ser um livro! Li o texto, imaginei um filme da história, me transportando para a Americana de 70 anos atrás, imaginando os locais como eram, alguns trazidos de volta pelas raras imagens publicadas. Ainda tocado por ler sobre a tragédia com detalhes pela primeira vez, não posso deixar de agradecer o precioso presente. Parabéns!

  3. Que texto primoroso!! Minha avó, meu tio, minha mãe e meu pai, além de vários tios, hoje todos já falecidos, contavam essa história marcante. Mas nunca, nenhum deles a contou com tantos detalhes, além das fotos espetaculares. Eu consegui daqui viver esses momentos terríveis pelos quais passou minha querida cidade. Obrigado pela publicação. Vou divulgar!!

  4. Que texto extraordinário! Quantos detalhes e quanto realismo! Um enriquecimento à história da nossa querida Americana! Parabéns!

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